segunda-feira, 20 de junho de 2011

Carta do Cônsul Geral da Espanha em Lisboa ao Governador de Badajoz e Presidente da Junta da Extremadura





Meu estimado Moreti: 



Mil sinceros parabéns pelo seu novo emprego, e muitos mais pelo formidável, brilhante e bom aspecto que vão tomando os negócios da minha amada pátria. Sabendo Vossa Mercê tudo quanto particularmente me interessa, suplico-lhe que não seja tão lacónico quando me escreva; assim mesmo lhe rogo que use de iniciais para indicar pessoas que já conheço, e que assine o seu nome com um M. e que me escreva sob o nome de Guanche. Todas estas precauções e ainda mais são necessárias no estado crítico em que nós os espanhóis nos achamos neste Reino*. O recomendado de Vossa Mercê chegou no dia 16, e no mesmo dia prosseguiu com toda a segurança para o seu destino, levando consigo a carta fechada que trazia e a recomendação de um bom amigo. Acaba de voltar com a resposta**, e não querendo eu deter-lhe, direi a Vossa Mercê à pressa as notícias e as ideias que me ocorrem para que, no caso de que essa Junta [da Extremadura] as considere úteis, possa comunicá-las à Suprema Junta de Sevilha. 

O Exército francês de Portugal, que jamais chegou a ter 24 mil homens, acha-se reduzido a 13 ou a 14 mil, repartidos entre Elvas, Almeida, Porto, Figueira, Peniche, Cascais, Mafra, Setúbal, Reino dos Algarves e Lisboa***, podendo dizer-se que se encontram encerrados num saco com as imensas riquezas que produziu a contribuição de guerra e a prata das igrejas, o que se computa em 24 milhões de duros [sic]. 
Um Exército espanhol composto de 18 ou 20 mil homens, vindo da Galiza a esta cidade [=Lisboa] por via do Porto, poderia fazer a conquista deste Reino em 15 ou 20 dias, adquiriria para a Espanha a maior reputação política aos olhos da Europa, recolheria bastantes riquezas para fazer toda a campanha, guardaria e asseguraria as nossas fronteiras, destruindo este Exército inimigo que está nas suas costas, daria a liberdade a três ou quatro mil espanhóis indignamente desarmados, etc., etc. 
Digo que este Exército deveria vir da Galiza, primeiro por ser aquela província a que mais abunda de gente, por ser a menos ameaçada do inimigo e a mais fácil de defender-se pelas suas costas e montanhas, e em segundo lugar porque não tendo o nosso Exército que atravessar o Tejo, neutralizaria e evadiria as dificuldades que opõem os navios e fortalezas que o defendem. 
Para melhor assegurar o mais pronto e feliz êxito da empresa, seria conveniente: 

1.º que uma divisão de oito a dez mil homens entrasse por Santa Bárbara e Serpa para apoderar-se do Alentejo e Setúbal, e cortar a comunicação do Algarve. 

2.º que o Exército de Badajoz ameaçasse as guarnições de Elvas. 

3.º que o de Ciudad Rodrigo praticasse outro tanto a respeito de Almeida. 

4.º enfim, que os ingleses fizessem um falso ataque sobre Cascais e São Julião no dia em que os espanhóis se apresentassem diante desta capital. Deste modo poderia não haver uma gota de sangue derramada. 

Na minha opinião, uma proclamação curta deveria expressar que os espanhóis vinham agora a Portugal com o objectivo de combater contra um Exército tão inimigo dos portugueses como dos espanhóis, que, fazendo causa comum, vinham ajudá-los a sacudir o jugo infame, que vêm enfim abrir os seus portos ao comércio, à abundância e à prosperidade de que gozava este Reino antes que uns soldados que não têm mais religião nem princípios que o amor das riquezas, não somente os despojaram das que tinham, mais ainda de todos os meios que podiam procurar a sua existência, etc., etc. 
As últimas notícias de Inglaterra anunciam-nos que uma expedição de 20 mil homens ao mando do General Moore deveria sair daqueles portos no mês de Maio, e que se dirigiria a Portugal; as embarcações de transporte que se viram ultimamente unir-se à esquadra que bloqueia este porto parece que apoiam esta opinião; mas todo o bom espanhol devia sentir cordialmente que seja a Inglaterra e não a Espanha a que faça a fácil e vantajosa conquista de Portugal, em primeiro lugar porque podiam os ingleses apoderar-se das naus de guerra que ficaram neste porto, e das imensas riquezas que os franceses juntaram, e em segundo lugar porque fazendo-se donos de Portugal, julgariam poder dispor ao seu gosto este Reino; ao passo que se fossem os espanhóis os que fizessem a conquista, poderiam ou devolvê-la ao seu Príncipe, ou trocá-la por uma possessão americana que o acomodasse. Para realizar a nossa intenção, seria preciso adiantar-nos e não perder um instante para executar o projecto; rogando ao mesmo tempo aos ingleses que destinem a sua expedição para outros portos da Espanha. Basta por agora. Noutra ocasião direi o mais que ocorra. 
As expressões de Vossa Mercê foram muito gratas e o grau de Coronel fez abrir tamanhas atenções. Veja Vossa Mercê se um pobre aprisionado e desarmado pode servir de alguma coisa e mande com confiança mas com cautela a seu amigo. 



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Nota: 

A razão de tantas precauções (o sublinhado é do autor) deve-se à mudança da atitude de Junot com os espanhóis depois de ter tomado conhecimento da rebelião do General Belestá no Porto e de outros corpos de tropas espanholas noutras partes de Portugal (como por exemplo o Regimento de Múrcia). Na sequência destes acontecimentos, como atrás vimos, Junot ordenou que os militares espanhóis se reunissem no Terreiro do Paço (para supostamente embarcarem de regresso ao seu país), sendo aí desarmados e encarcerados em embarcações surtas no Tejo (salvo algo algumas excepções). Ignoramos se foi devido a este incidente que o Cônsul Geral da Espanha resultou prisioneiro, como o afirma no último parágrafo desta carta, ou se só o diz num sentido metafórico, tendo em conta tudo o que tinha ocorrido aos espanhóis. De qualquer forma, e apesar de não datada, esta carta teria sido escrita por volta de 20 de Junho de 1808, sendo remetida para o Governador de Badajoz através de um dos vários confidentes que este último tinha em Lisboa. Para evitar represálias caso a carta fosse interceptada pelos franceses, o Cônsul espanhol (cujo nome real ignoramos) assinou-a com o falso nome de Guanche (que curiosamente é o nome dado aos habitantes das Cánarias no tempo da sua conquista), e endereçou-a um outro pseudónimo, Moreti (que não deve ser confundido com Federico Moretti), ao qual felicita pela sua suposta condecoração de Coronel. O destinatário era, na verdade, José (ou Josef, segundo a grafia da época) Galluzo, Governador de Badajoz e presidente da Junta Suprema da província da Extremadura, conforme este último confessaria ao Capitão General do Exército da Galiza numa carta datada de 25 de Junho de 1808

** É possível que se trate da resposta de Cotton a Galluzo datada de 20 de Junho de 1808. Não encontrámos a carta de Galluzo (de 11 de Junho) que motivou tal resposta.

*** Enganava-se o Cônsul ao rebaixar tanto os números reais dos franceses em Portugal. Ignorava também que o "Reino do Algarve" já estava a repelir os invasores desde o dia 16 de Junho, data da "restauração" iniciada em Olhão. Na verdade, foi o próprio Junot que deu publicidade às revoltas algarvias e do norte do país através da sua famosa proclamação de 26 de Junho de 1808, a qual inclusive serviu de motivo para uma réplica dum franciscano algarvio, entre outras.